segunda-feira, maio 31, 2004

Aca Non se Usa

O Coroneu permanecia em pé, com a mochila aos pés, de braço estendido e dedo espigado. De vez em quando passava um carro e levantava pó. Depois de um almoço improvável

(O Coroneu comprou metade de um pão ao dono de um hotel rural fora de época, à revelia de um furioso doberman solto)

ponderava as possibilidades de montar a tenda quando viu uma figura a caminhar no campo. Um homem chegou à estrada e atravessou-a a 100 m do Coroneu. O homem permaneceu em pé do lado de onde vinham os carros. Quando um carro passou o homem estendeu o dedo. Estava também à boleia, e prostrava-se como se tivesse chegado antes do Coroneu.

O Coroneu foi falar com o homem. Ao aproximar-se constatou que teria uns 40 anos. Ao expor com calma o caso
(piensa el señor que es justo...)
a resposta do senhor, depois de fazer de conta que não entendia o castellano de un extrangeiro, foi

- Usted estava primero? Bueno aca non se usa eso...

E como a discussão começou a aquecer e o Coroneu notou a mão do senhor a viajar com frequencia atrás das costas, lembrou-se também que tinha a sua própria faca de cozinha nas costas presa ao cinto como viu a alguns gauchos. Não que o Coroneu a usasse, mas serviria para a mostrar também.

Subito uma carrinha de caixa aberta passou e parou. Levou-os aos dois. Durante a viagem, na caixa aberta onde chibava o vento gelado dos 130km/h, o senhor disse que era chileno
(desde los 11 que estoy en Argentina pero soy chileno mi corazon es chileno)
e não respondeu a nenhuma pergunta sobre a Argentina. Em contrapartida exaltava a pátria chilena em cada curva. Era na verdade um senhor humilde, vivera sempre no campo. O Coroneu conheceu chilenos conscientes emigrados. Este senhor, apesar de humilde e porventura de bom coração, não era um deles.

terça-feira, maio 25, 2004

Sobre Livros

Após responder a uma solicitação sobre livros, o Coroneu transcreve para aqui alguns que gosta:

-Contos e O Tio Vânia, de Tchekov: qualquer conto, mas de preferência os mais curtos. Está lá tudo! O Tio Vânia é uma peça de teatro muito boa. Anton Tchekov sustentava a mãe e irmãos enquanto estudava medicina, com estes pequenos contos publicados em jornais. Com 23 anos. O Coroneu tem pena de não saber russo...

-Huckleberry Finn, de Mark Twain: Hemingway disse deste livro q "n havia nada antes, n haverá nada depois". Ainda hoje proibido em algumas escolas norte-americanas q acusam o livro de racismo. O livro retrata o racismo da altura do escritor e o dipolo civilização/natureza, usa vários sotaques sociais e geográficos nos diálogos e a história é q todos conhecem.

-Winnesbourg,Ohio, de S.Anderson: O Coroneu é um apreciador da geração perdida e este senhor com este livro influenciou reconhecidamente Scott Fitzgerald, Hemingway, James Joyce, W.Faulkner, Ford Maddox Ford... Fala de uma cidade e dos seus habitantes.

-Nick Adams Short Stories, The Sun Also Rises e Farewell to Arms: O Coroneu leu toda a obra de Hemingway, incluindo os artigos de jornal. O melhor são os contos com a percepção do estado de espirito da personagem.

-The Sound and the Fury: W.Faulkner trabalhava nos correios. S.Anderson garantiu-lhe que lhe publicava o seu primeiro livro se o nao tivesse que ler. Anos depois, decepcionado com a critica Faulkner escrevia este livro para ele próprio. Três irmãos têm diferentes formas de contar o que aconteceu.

-Rayuela, de Cortazár: Cortazár foi um argentino à frente do seu tempo pelas técnicas de escrita. Este romance usa a agora muito em voga recursão de tempo, alteração de personagens, etc,... E pode ser lido continuamente ou salteando capitulos indicados pelo autor, como no jogo da macaca (é o k significa Rayuela em castelhano). 2004 é o ano Cortazár na Argentina.

-Las Venas Abiertas de America Latina, de Galeano: Eduardo Galeano é um Uruguaio que percorreu toda a américa latina, trabalhou como mineiro, etc...Este livro é um ensaio social e politico que fala das razões q levam o continente a ser o q é hoje.

-Principezinho e Courrier Sud, Saint Exupery: Nem é preciso falar deste. O segundo foi o primeiro livro do autor e fala de duas pessoas q se querem bem mas... Quem dera ao Coroneu ter escrito estes livros :).

-Jonathan Livingston Seagull e The Bridge Across Forever, de R.Bach: O primeiro pq o Coroneu gostou muito qd era adolescente. O segundo fala do destino e de almas gémeas e é muito sincero e tão universal qt um livro o pode ser. Deve dar muito trabalho escrever livros tão simples.

-Manual dos Inquisidores, de Lobo Antunes: Este e os primeiros são muito expressionistas, nota-se sangue nos livros. Há quem não goste, o Coroneu gosta.

...
E muitos mais, o Coroneu podia estar um dia inteiro a falar disto, a acrescentar Corto Maltese por exemplo, mas já chega... Há é o medo de esquecer algum importante...

sexta-feira, maio 21, 2004

Imagem Inédita...

...do Coroneu.

O Coroneu, a mochila, a vara e a sombra deles

Foto algures na Patagónia.

quarta-feira, maio 19, 2004

No, no llores mas

"- Dime, qué comemos.
El coronel necessitó setenta y cinco años para llegar a ese instante. Se sintió puro, explícito, invencible, en el momento de responder:
- Mierda."

El Coronel no Tiene Quien le Escriba, Gabriel Garcia Márquez

O autocarro que levou o Coroneu ia praticamente vazio. Praticamente significa um par de viúvos animados partilhando histórias dos respectivos falecidos e outra argentina ao fundo que ia sempre a dormir, ou assim parecia porque jamais tirava os óculos escuros. Na parte de baixo apenas o condutor e o assistente que distribuia as refeições e se encarregava dos vídeos. Era um confortavel autocarro de dois andares. E muitas horas até Buenos Aires.

A meio da viagem o autocarro parou meia hora no terminal de uma cidade grande que o Coroneu não conseguiu identificar. O par de viúvos bem dispostos acomodaram-se numa mesa a tomar café. O Coroneu foi levantar dinheiro. A máquina multibanco era adjacente a uma cabine telefónica, onde entrou a argentina dos óculos escuros.

Apesar da hermética construção da cabine o constrangido Coroneu ouviu o grito da argentina antes de desligar o telefone.

(Cabron de mierda hijo de puta que juro que vuelvo e ya no me vas a ver mas)

Depois saiu da cabine e acendeu um cigarro. Foi falar com o motorista que acomodava as bagagens. Entrou nas bilheteiras do terminal e voltou ao motorista. O Coroneu sentou-se a tomar café numa mesa ao lado dos viúvos que riam.

Através da vitrine viu a argentina mudar a bagagem para outro autocarro. O outro autocarro voltava de Buenos Aires com destino à pequena cidade de onde tinhamos saído. A argentina voltava para trás. E sem nunca tirar os óculos.

terça-feira, maio 18, 2004

Não é Destino, é Viagem.

"Durante cincuenta y seis años - desde quando terminó la última guerra civil - el coronel no habia hecho nada distinto de esperar. Octubre era una de las pocas cosas que llegaban", El Coronel no Tiene Quien le Escriba, Gabriel Garcia Márquez

Depois dos primeiros 30 minutos em direcção a Buenos Aires, o autocarro encostou à berma. O Coroneu foi ver à grande janela da frente. Parado diante do autocarro, um carro parado mantinha as 4 luzes a piscar. Um senhor que não chegara a tempo queria entregar uma encomenda.

(Para mi hija que estudia en la capital federal... Le gustará mucho)

O condutor e o assistente pareciam conhecer o senhor. Tinha um caixote enorme que ajeitaram junto das outras bagagens.

(Para mi hija que estudia en la capital federal... Le gustará mucho)

O senhor tinha feito 50 km para entregar o caixote enorme. Despediu-se e o autocarro continuou enquanto o fiat voltou para 50km atrás. Quando no outro dia chegou a Buenos Aires os gritos felizes de uma estudante recordaram da encomenda ao Coroneu. A estudante agradeceu ao motorista e saiu da estação radiante com o caixote nos braços.

(Para mi hija que estudia en la capital federal... Le gustará mucho)

O Coroneu não sabe o que estava dentro do caixote para além da felicidade da filha do senhor. A felicidade não parece ser um destino definitivo, mas uma viagem. Para o senhor uma viagem de 100km. Ele sabia que valia a pena uma hora de carro. Parece que às vezes, mesmo que o autocarro já tenha partido, vale a pena.

segunda-feira, maio 10, 2004

I Guess I Was Moved by His Gentle Way (a true love and death story full of non-spook but understandable feelings)

“(…) verdad que en primavera
suena mi nombre en tus oídos
y tú me reconoces
como si fuera um río
que pasa por tu puerta?”,
Las Uvas e El Viento, Pablo Neruda

O Coroneu esperava um autocarro que não chegava nunca para finalmente sair do que parecia ser a cidade mais cara da América do Sul. O autocarro chegou e ainda mais atrasada que o autocarro chegou uma americana alheada. Os americanos distinguem-se pela pronúncia, pela brancura da pele e pela atitude que a maioria tem. São simpáticos. Esta americana entrou a olhar para o chão e sentou-se ao lado do Coroneu, pôs os phones e alheou os olhos contra o vidro.

“Do you have a cigarrete?”, perguntou ao Coroneu. “O que eu não dava por um cigarro”.
“Não podes fumar aqui dentro”.
“Are you european?”. Depois do Coroneu lhe ganhar confiança com bolachas de aveia e evitar perguntas directas, contou a história.

Viajava há dois meses quando o namorado americano lhe disse por telefone que já não eram namorados. Entretanto ela conhecera um domador de cavalos em Cuzco e passaram “one hell of a wonderfull week”. Finalmente o namorado americano atendeu-lhe o telefone e tentou pedir desculpa mas na primeira oportunidade ela relembrou-o que já não eram namorados antes de desligar o telefone. Continuou dois meses com o peruano e atravessaram a fronteira. Até entender que ao peruano domador de cavalos lhe interessavam as americanas, as australianas, as brasileiras… até por fim a abandonar em San Pedro de Atacama por uma sueca.

Ela comprou o bilhete do autocarro e antes de seguir telefonou ao namorado americano. Da casa dele desligaram quando ela se identificou. Telefonou para a irmã. O seu ex-namorado americano teria desistido da universidade, engravidado uma rapariga, a rapariga teria abortado. Encontraram-no morto com um tiro, suicídio.

“He always said ‘You can count on me’ when I was in troubles. E eu sempre contei com ele sempre”, disse a americana antes de repôr os phones e refugiar-se na janela.

“Não entendo como desperdicei tempo com este peruano”, disse ela, “Three months...".
“I guess I was moved by his gentle way”, disse ela olhando pela janela.

segunda-feira, maio 03, 2004

Um dia de cão...

... devia significar um dia agradável.
Não trabalham até tarde, dormem o tempo que querem, fazem companhia, obedecem ao dono que adoram, nunca atraiçoam nem são por natureza maliciosos...

O Coroneu acha que há talvez um país no mundo onde um dia de cão tenha conotação positiva.
Talvez na China...

sábado, maio 01, 2004

Um almoço fora de casa

"Ay Patria, sin harapos,
ay primavera mía,
ay cuándo
ay cuándo y cuándo
despertaré en tus brazos
empapado de mar y de rocío.",
Las Uvas y El Viento, Pablo Neruda

Tinha o Coroneu acabado de conhecer o turco, no templo de Tiwanacu, quando foram almoçar com duas senhoras austriacas e um casal britânico.

Uma das senhoras austríacas sofria de dores no pé direito engessado. Tinha-o torcido simplesmente a andar. Durante o início da manhã todos esperavam pela senhora, que caminhava devagar. Depois o guia saturou-se e passaram a esperar por ela no final das explicações. A outra senhora austríaca tinha uma memória excelente. Aconselharam visita ao oásis do deserto no sul do Peru, onde o pé direito foi torcido. O Coroneu não percebeu se eram irmãs mas davam-se muito bem.

O casal britânico tinha 2 pares de olhos azuis muito parecidos. Eram os dois consultores. Tiraram férias de um ano, para viajarem juntos. Ambos tinham viajado muito em separado antes e eram por isso experientes em transportar a casa na mochila. Mostraram fotos de sobrinhos e do casamento de um amigo em comum a que não foram porque há 8 meses que não iam a casa. O Coroneu perguntou que parte do mundo tinham gostado mais e ambos sorriram e disseram que era a pergunta mais difícil e a mais frequente. No entanto destacaram Tailândia e Vietnam. Ela lembrava-lhe e preparava os medicamentos para depois do almoço dele, ele tinha a água desinfectada num recipiente próprio para os dois. O Coroneu gostou mesmo da sinergia.

Depois de almoço, o turco contou os doláres para pagar e o resto pagou em bolivianos. Todos tomaram café e ficaram a falar das diferenças entre os países.

Todos concordaram que tinham muitas saudades de casa.