quarta-feira, março 22, 2006

Ópera da Repartição Pública - parte I

cenário de escritório de detectives nos anos 50, com livros empilhados no balcão e ventoinhas de cabeça giratória que não afastam moscas nem calor. Num papel A4 seguro ao alto com fita-cola lê-se 'Finansas aqui'.

49 pessoas esperam entre as quais um cigano barbudo com todos os lugares adjacentes vagos, um bébé a mamar da despudorada mãe, dois estudantes a discutirem Kafka e um homem de camisa havaiana que caminhando com o telemóvel encostado grita intermitentemente 'Venda seu burro venda'.

Antes do Coroneu é atendida uma velhinha surda que entrega a senha ao balcão. No balcão a conversa com a velhinha surda evolui
- Se o seu marido só morreu este ano não tem de ter recebido isso - diz-lhe a funcionária.
- Mas disseram-me que... - diz a velhinha.
- Ó filha a mim também me dizem muita coisa.
- Eu não sei mas... - diz a velhinha.
- Ai e eu é que sei? - e virando-se para os colegas em tom cúmplice - sou bruxa queres ver?
- Veja lá se é isto -a velhinha abre a mala.
- Ai nem pensar que vou mexer ai! Não me pagam para isso.
- Só recebi este papel...
- Ai mulher não é nada disso - e virando-se para os colegas em tom confessional - calham-me sempre estas velhas!
- E também este...
- Pronto está a ver, afinal estava aqui! Para a próxima não faça tanta confusão não vê que estão mais senhores à espera, olhe aquele senhor ali à espera - e a funcionária aponta para o Coroneu.

O Coroneu levanta-se, abre a boca à funcionária e fá-la engolir o cigano barbudo, os estudantes que não pararam de falar de Kafka, e o homem de camisa havaiana que ainda guturou 'Venda...' do estômago da funcionária. A mãe despudorada ficou porque tinha a senha seguinte e é chato perder a vez ainda para mais a amamentar um bébé.

"Para a próxima vou à Loja do Cidadão", diz o Coroneu saindo de braço dado com a velhinha que em troca lhe dá uma receita de souflé.

E cai o pano

2 comentários:

M. disse...

O Coroneu virou compositor, guionista e encenador! E dos bons ainda por cima :D Mais, queremos mais. Sequela! Reload! :)

Anónimo disse...

Lindo!
Hilariante!
E tão nacional...
Ainda ontem dizia a um amigo "estrángéiro" que se tivesse chovido no dia 25 de Abril de 1974, provavelmente hoje estaríamos no Guinness com o recorde da mais antiga ditadura "non-stop" domundo