"[New Orleans] is the city where imagination takes precedence over fact.", William FaulknerÀ noite entre a multidão da Bourbon Street soava um suave saxofone. O que distinguia a negra cega encostada à parede era o branco opaco dos olhos abertos, sem íris como nos filmes de terror. Tocava saxofone. Celebrava-se o
Labor Day como um mini
Mardi Gras e o Coroneu observava pela rua a
gay parade coexistindo com as familias contemplativas de turistas americanos que passeavam driblando o carrinho de bébé. Nas varandas
, meninas pendurando colares coloridos declinavam ao pudor desvendando implantes mamários decadentes para os
voyeurs de nariz erguido. A velha negra de olhos brancos e um cordão de
voodoo tocava saxofone sem aceitar gorjetas. Ao lado um cartaz pacífico esclarecia: "Salvation Jazz for New Orleans".
A 4 quarteirões do
french quarter, o cemitério construido em tumbas elevadas numa premonição de inundações, que os turistas visitavam na curiosidade mórbida de quem não enterra mortos ali.
A cidade viva edificada lá em baixo, numa média de 1,5m abaixo do nível da bacia do golfo do México a norte, rodeada pelo
Mississipi e os pântanos de crocodilos a sul. Os mortos sobre os vivos, numa inversão pagã coerente com os creolos franceses vendidos por Napoleão em 1803, escravos negros e artistas de jazz demasiado pobres para viajarem para Chicago como
Armstrong para fugir à descriminação sulista, herdeiros falidos de colonialistas espanhóis, intelectuais americanos como Faulkner ou escritores homosexuais assumidos como
Tennessee Williams.
Voodoo, a mistura pacífica de contra culturas, a liberdade de expressão e a vida despreocupada sempre alvo de desprezo dos políticos conservadores.
Este ano, quatro anos e 1 piercing depois, o
Katrina afastou comemorações possiveis do
Labor Day. Ou como dizem as TV's, a falta de acção do governo. Os refugiados dividem-se para os estados vizinhos do
Louisiana: Texas, o mais rico ou Mississipi, o mais pobre dos EUA. Pelo que noticiam as TV's a cidade evacuada tem metade dos seus polícias dados como desaparecidos. Na arena onde os habitantes coexistem há violações e tiroteios permanentes. Milhares de recém nascidos foram evacuados das maternidades sem tempo de avisar os pais. E entretanto a mãe texana do presidente
afirma qualquer coisa afectada como "Nós lá no Texas somos muito hospitaleiros e eles já eram desfavorecidos, isto até foi bom para eles". Sete das cinco áreas atingidas pertenciam a famílias pobres cujos velhos diques não protegeram.
Do outro lado do oceano chegam à europa ecos da cidade mais euro-africana dos EUA. Sobre as notícias, o Coroneu distingue um suave saxofone vibrando em desabafos espirituais contra nada mas a favor da coexistência de credos e étnias que, como a velha cega disse ao Coroneu, a fez viver ali. Ali, na cidade abandonada a seu tempo por franceses, espanhóis e recentemente pelo estado americano - cuja verba para manutenção dos diques não disponibilizou, cujo plano de evacuação foi deficiente. Numa resignação aos desastres da História, à retórica e aos políticos, encostada a uma noite submersa a negra cega de olhos brancos opacos sopra no saxofone desacreditada de qualquer fé que não lhe traga a salvação eterna, para além da carne e da morte que, como nos filmes de terror, pairam sobre a suspensa alegria da vida em New Orleans.