Depois de um ano dentro do galeão Cinque Ports, o tripulante de 28 anos Alexander Selkirk desentendeu-se mais uma vez com o capitão e numa teimosia efervescente de sangue escocês exigiu ser abandonado no arquipélago deserto de Juan Fernandez onde o galeão se abastecia de água fresca. Foi em Setembro de 1704 que a embarcação o deixou para trás - o galeão Cinque Ports naufragou pouco tempo depois - e Selkirk esperava ser resgatado em breve. Demorou 4 anos e meio.
Entretanto na ilha teve de sobreviver aos leões marinhos que invadiram a praia, embrenhou-se na vegetação, domesticou gatos selvagens para companhia e escondeu-se de dois navios espanhóis que pelo defeito de ser irlandês o torturariam até morrer. Sobreviveu até outro navio britânico aportar na ilha, com o mesmo capitão do Cinque Ports como piloto. Alexander Selkirk voltou finalmente para casa e foi uma das inspirações do livro Robinson Crusoé publicado em 1719.
Agora, quando o Coroneu arrisca uma situação segura em troca de um risco desconhecido por defender convicções teimosas, ouve a voz experiente de um marinheiro isolado pelas ilhas do Pacífico a acautelar tendências murmurando:
'Tem cuidado Coroneu, lembra-te do teimoso escocês corajoso Alexander Selkirk'.
terça-feira, setembro 27, 2005
segunda-feira, setembro 26, 2005
Era Engano
Depois de almoço o Coroneu telefonava para um telemóvel cujo número estava escrito num anúncio de aluguer de casa em Lisboa. Atenderam.
- Xim?
O Coroneu perguntou da casa.
- Como arranjou este número? - perguntou-lhe uma feminina voz roca.
- Estava no anúncio do jornal.
- Mas, quer dizer, a casa, alugar, mas como arranjou este número?
- Desculpe, não tem uma casa para alugar? - perguntou o Coroneu confundido.
- Tenho lá a casa de Aveiro sim, confidencial claro, mas quem lhe deu este número?
- Aveiro?! Então foi engano, desculpe...
- Oiça, desculpe, não está à vontade é natural, se quiser ver a casa é sem compromisso.
- Não, é engano mesmo, obrigado.
- Para a primeira vez é natural, não está à vontade, peço-lhe é que não me ligue para o fixo por causa do meu marido.
Antes de desligar o Coroneu ouviu ainda a feminina voz rouca:
- É uma casa de frente para a ria, sem compromisso...
- Xim?
O Coroneu perguntou da casa.
- Como arranjou este número? - perguntou-lhe uma feminina voz roca.
- Estava no anúncio do jornal.
- Mas, quer dizer, a casa, alugar, mas como arranjou este número?
- Desculpe, não tem uma casa para alugar? - perguntou o Coroneu confundido.
- Tenho lá a casa de Aveiro sim, confidencial claro, mas quem lhe deu este número?
- Aveiro?! Então foi engano, desculpe...
- Oiça, desculpe, não está à vontade é natural, se quiser ver a casa é sem compromisso.
- Não, é engano mesmo, obrigado.
- Para a primeira vez é natural, não está à vontade, peço-lhe é que não me ligue para o fixo por causa do meu marido.
Antes de desligar o Coroneu ouviu ainda a feminina voz rouca:
- É uma casa de frente para a ria, sem compromisso...
terça-feira, setembro 20, 2005
Societé Anonyme des Artistes Peintres
Quando expostos pela primeira vez ao público, em 1874, os quadros impressionistas foram zombados pelos parisienses demasiado acomodados às obras sombrias e bem delineadas do barroco. A partir do nome deste quadro de Monet, um crítico depressiou toda a exposição no jornal Le Charivari chamando aos artistas um grupo de impressionistas - designação que o próprio grupo posteriormente adoptou. O impressionismo distinguiu-se pelo registo das tonalidades no momento, ausência de contornos nítidos, substituição das sombras escuras e pretas por sombras luminosas e coloridas, contrastes entre luz e sombra obedecendo à lei das cores complementares... Este quadro não é o que melhor traduz o impressionismo - dizem os críticos e o Coroneu acredita - mas é o que históricamente marca o ínicio de uma nova forma de pensar a arte: na pintura, na literatura e na escultura.
domingo, setembro 11, 2005
No Dia Que Todos Se Lembram
'Non perche siammo diversi del altri, ma perche noi non morriremo mai', Luna Pop
Há quatro anos atrás o Coroneu estava com o David (esse miúdo bastardo amigo), os dois sobre a estrada mais meridional dos Estados Unidos a menos de 200km de Cuba, tinham chegado a Key West após quase um mês viajando pela costa leste, tinham visto coisas tão diversas e curiosas como o rapaz que vendia anedotas a 1 dólar ou o Labor Day em New Orleans. E depois de quatro anos o que sobra do Coroneu e do amigo?
Cada um na sua estrada, prontos a partir de novo comendo macadame com a planta dos pés e quando o Coroneu vê hoje os programas a recordar os aviões e entretanto todos paralizados diante da televisão mais próxima, recorda-se de quando andava com o David (esse miúdo bastardo amigo) no Ford Taurus alugado, recorda-se de Party Marty (o louco personagem da noite na Florida), recorda-se dos homossexuais que ofereciam cerveja à porta do bar, recorda-se de Buffalo (a cidade do espírito gótico) e depois de quatro anos recorda-se como, assim tão longe e divertido sem pensar em mais nada a não ser viver o momento, o Coroneu recorda-se como ao saber sentiu falta dos seus.
O Coroneu e o David (esse miúdo bastardo amigo) esqueceram-se da chuva e da ausência e embriagaram-se como adolescentes, como o Coroneu há uns anos, como o Coroneu faria hoje se não soubesse sair para jantar com amigos que não recordem o que sucedeu de forma diversa como o Coroneu e também o David (esse miúdo bastardo amigo) recordam.
O que eles recordam é como acordavam de sacos cama sob um céu de tempestade ou debaixo de um sol fuzilador, o que eles recordam é da sensação inimitável e autêntica de adormecer na praia coberta de estrelas e dos mosquitos que se alimentavam deles, o que eles se recordam é de acordar no carro enquanto amanhecia e o outro já conduzia noutro Estado ou então ao anoitecer sempre numa estrada que parecia não acabar nunca como a felicidade quando surge, porque aquele era um outro mundo, o mundo dos americanos tão diferentes do que tinham imaginado, era um mundo diferente do mundo dos aviões e da morte e da angústia e lá naquele mundo seriam sempre jovens e aquelas coisas que passavam na TV e na rádio do Ford Taurus não pertenciam aquele mundo, não por eles serem diversos dos outros mas porque naquela altura, sobre a estrada, o Coroneu tinha a certeza e era talvez capaz de jurar, que não morreriam nunca.
Há quatro anos atrás o Coroneu estava com o David (esse miúdo bastardo amigo), os dois sobre a estrada mais meridional dos Estados Unidos a menos de 200km de Cuba, tinham chegado a Key West após quase um mês viajando pela costa leste, tinham visto coisas tão diversas e curiosas como o rapaz que vendia anedotas a 1 dólar ou o Labor Day em New Orleans. E depois de quatro anos o que sobra do Coroneu e do amigo?
Cada um na sua estrada, prontos a partir de novo comendo macadame com a planta dos pés e quando o Coroneu vê hoje os programas a recordar os aviões e entretanto todos paralizados diante da televisão mais próxima, recorda-se de quando andava com o David (esse miúdo bastardo amigo) no Ford Taurus alugado, recorda-se de Party Marty (o louco personagem da noite na Florida), recorda-se dos homossexuais que ofereciam cerveja à porta do bar, recorda-se de Buffalo (a cidade do espírito gótico) e depois de quatro anos recorda-se como, assim tão longe e divertido sem pensar em mais nada a não ser viver o momento, o Coroneu recorda-se como ao saber sentiu falta dos seus.
O Coroneu e o David (esse miúdo bastardo amigo) esqueceram-se da chuva e da ausência e embriagaram-se como adolescentes, como o Coroneu há uns anos, como o Coroneu faria hoje se não soubesse sair para jantar com amigos que não recordem o que sucedeu de forma diversa como o Coroneu e também o David (esse miúdo bastardo amigo) recordam.
O que eles recordam é como acordavam de sacos cama sob um céu de tempestade ou debaixo de um sol fuzilador, o que eles recordam é da sensação inimitável e autêntica de adormecer na praia coberta de estrelas e dos mosquitos que se alimentavam deles, o que eles se recordam é de acordar no carro enquanto amanhecia e o outro já conduzia noutro Estado ou então ao anoitecer sempre numa estrada que parecia não acabar nunca como a felicidade quando surge, porque aquele era um outro mundo, o mundo dos americanos tão diferentes do que tinham imaginado, era um mundo diferente do mundo dos aviões e da morte e da angústia e lá naquele mundo seriam sempre jovens e aquelas coisas que passavam na TV e na rádio do Ford Taurus não pertenciam aquele mundo, não por eles serem diversos dos outros mas porque naquela altura, sobre a estrada, o Coroneu tinha a certeza e era talvez capaz de jurar, que não morreriam nunca.
sexta-feira, setembro 09, 2005
Katrina's Jazz for New Orleans (Long)
"[New Orleans] is the city where imagination takes precedence over fact.", William Faulkner
À noite entre a multidão da Bourbon Street soava um suave saxofone. O que distinguia a negra cega encostada à parede era o branco opaco dos olhos abertos, sem íris como nos filmes de terror. Tocava saxofone. Celebrava-se o Labor Day como um mini Mardi Gras e o Coroneu observava pela rua a gay parade coexistindo com as familias contemplativas de turistas americanos que passeavam driblando o carrinho de bébé. Nas varandas, meninas pendurando colares coloridos declinavam ao pudor desvendando implantes mamários decadentes para os voyeurs de nariz erguido. A velha negra de olhos brancos e um cordão de voodoo tocava saxofone sem aceitar gorjetas. Ao lado um cartaz pacífico esclarecia: "Salvation Jazz for New Orleans".
A 4 quarteirões do french quarter, o cemitério construido em tumbas elevadas numa premonição de inundações, que os turistas visitavam na curiosidade mórbida de quem não enterra mortos ali.
A cidade viva edificada lá em baixo, numa média de 1,5m abaixo do nível da bacia do golfo do México a norte, rodeada pelo Mississipi e os pântanos de crocodilos a sul. Os mortos sobre os vivos, numa inversão pagã coerente com os creolos franceses vendidos por Napoleão em 1803, escravos negros e artistas de jazz demasiado pobres para viajarem para Chicago como Armstrong para fugir à descriminação sulista, herdeiros falidos de colonialistas espanhóis, intelectuais americanos como Faulkner ou escritores homosexuais assumidos como Tennessee Williams. Voodoo, a mistura pacífica de contra culturas, a liberdade de expressão e a vida despreocupada sempre alvo de desprezo dos políticos conservadores.
Este ano, quatro anos e 1 piercing depois, o Katrina afastou comemorações possiveis do Labor Day. Ou como dizem as TV's, a falta de acção do governo. Os refugiados dividem-se para os estados vizinhos do Louisiana: Texas, o mais rico ou Mississipi, o mais pobre dos EUA. Pelo que noticiam as TV's a cidade evacuada tem metade dos seus polícias dados como desaparecidos. Na arena onde os habitantes coexistem há violações e tiroteios permanentes. Milhares de recém nascidos foram evacuados das maternidades sem tempo de avisar os pais. E entretanto a mãe texana do presidente afirma qualquer coisa afectada como "Nós lá no Texas somos muito hospitaleiros e eles já eram desfavorecidos, isto até foi bom para eles". Sete das cinco áreas atingidas pertenciam a famílias pobres cujos velhos diques não protegeram.
Do outro lado do oceano chegam à europa ecos da cidade mais euro-africana dos EUA. Sobre as notícias, o Coroneu distingue um suave saxofone vibrando em desabafos espirituais contra nada mas a favor da coexistência de credos e étnias que, como a velha cega disse ao Coroneu, a fez viver ali. Ali, na cidade abandonada a seu tempo por franceses, espanhóis e recentemente pelo estado americano - cuja verba para manutenção dos diques não disponibilizou, cujo plano de evacuação foi deficiente. Numa resignação aos desastres da História, à retórica e aos políticos, encostada a uma noite submersa a negra cega de olhos brancos opacos sopra no saxofone desacreditada de qualquer fé que não lhe traga a salvação eterna, para além da carne e da morte que, como nos filmes de terror, pairam sobre a suspensa alegria da vida em New Orleans.
À noite entre a multidão da Bourbon Street soava um suave saxofone. O que distinguia a negra cega encostada à parede era o branco opaco dos olhos abertos, sem íris como nos filmes de terror. Tocava saxofone. Celebrava-se o Labor Day como um mini Mardi Gras e o Coroneu observava pela rua a gay parade coexistindo com as familias contemplativas de turistas americanos que passeavam driblando o carrinho de bébé. Nas varandas, meninas pendurando colares coloridos declinavam ao pudor desvendando implantes mamários decadentes para os voyeurs de nariz erguido. A velha negra de olhos brancos e um cordão de voodoo tocava saxofone sem aceitar gorjetas. Ao lado um cartaz pacífico esclarecia: "Salvation Jazz for New Orleans".
A 4 quarteirões do french quarter, o cemitério construido em tumbas elevadas numa premonição de inundações, que os turistas visitavam na curiosidade mórbida de quem não enterra mortos ali.
A cidade viva edificada lá em baixo, numa média de 1,5m abaixo do nível da bacia do golfo do México a norte, rodeada pelo Mississipi e os pântanos de crocodilos a sul. Os mortos sobre os vivos, numa inversão pagã coerente com os creolos franceses vendidos por Napoleão em 1803, escravos negros e artistas de jazz demasiado pobres para viajarem para Chicago como Armstrong para fugir à descriminação sulista, herdeiros falidos de colonialistas espanhóis, intelectuais americanos como Faulkner ou escritores homosexuais assumidos como Tennessee Williams. Voodoo, a mistura pacífica de contra culturas, a liberdade de expressão e a vida despreocupada sempre alvo de desprezo dos políticos conservadores.
Este ano, quatro anos e 1 piercing depois, o Katrina afastou comemorações possiveis do Labor Day. Ou como dizem as TV's, a falta de acção do governo. Os refugiados dividem-se para os estados vizinhos do Louisiana: Texas, o mais rico ou Mississipi, o mais pobre dos EUA. Pelo que noticiam as TV's a cidade evacuada tem metade dos seus polícias dados como desaparecidos. Na arena onde os habitantes coexistem há violações e tiroteios permanentes. Milhares de recém nascidos foram evacuados das maternidades sem tempo de avisar os pais. E entretanto a mãe texana do presidente afirma qualquer coisa afectada como "Nós lá no Texas somos muito hospitaleiros e eles já eram desfavorecidos, isto até foi bom para eles". Sete das cinco áreas atingidas pertenciam a famílias pobres cujos velhos diques não protegeram.
Do outro lado do oceano chegam à europa ecos da cidade mais euro-africana dos EUA. Sobre as notícias, o Coroneu distingue um suave saxofone vibrando em desabafos espirituais contra nada mas a favor da coexistência de credos e étnias que, como a velha cega disse ao Coroneu, a fez viver ali. Ali, na cidade abandonada a seu tempo por franceses, espanhóis e recentemente pelo estado americano - cuja verba para manutenção dos diques não disponibilizou, cujo plano de evacuação foi deficiente. Numa resignação aos desastres da História, à retórica e aos políticos, encostada a uma noite submersa a negra cega de olhos brancos opacos sopra no saxofone desacreditada de qualquer fé que não lhe traga a salvação eterna, para além da carne e da morte que, como nos filmes de terror, pairam sobre a suspensa alegria da vida em New Orleans.